Godsbegrip. Uma análise do discurso “Conceito de Deus”

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by Bruno Castro Schröder

 

Godsbegrip. Uma análise do discurso “Conceito de Deus” de Titus Brandsma

 

Resumo

O discurso Godsbegrip [Conceito de Deus], proferido por Titus Brandsma em 1932, por ocasião do Dies Natalis da Katholiek Universiteit Nijmegen, aborda a evolução histórica do conceito de Deus. Nele, Brandsma discute como esse conceito precisa ser renovado para atender às demandas modernas, especialmente diante da crescente secularização e do avanço das ciências. Ele argumenta que a fé e a razão podem coexistir, defendendo que a universidade deve ser um espaço onde ambos se enriquecem mutuamente. O objetivo é analisar como Brandsma articula o conceito de Deus em resposta ao contexto intelectual de seu tempo, marcado por debates entre filosofia e teologia. A metodologia deste trabalho é hermenêutica, cruzando as ideias de Brandsma com as influências filosóficas e teológicas de sua época. Brandsma propõe uma abordagem inovadora sobre o conceito de Deus, fundindo elementos do neotomismo com uma sensibilidade mística. Seu discurso propõe uma resposta à desconexão entre o ser humano moderno e a religiosidade, sugerindo uma nova abordagem para o conceito de Deus. Sua perspectiva busca integrar razão e fé, apontando para uma compreensão dinâmica e profunda da natureza divina, capaz de dialogar com os desafios do pensamento moderno.

Palavras-chave

Titus Brandsma. Conceito de Deus. Godsbegrip. Neotomismo, Filosofia.

 

Introdução

Titus Brandsma, nascido Anno Sjoerd Brandsma em 23 de fevereiro de 1881, em Ugoklooster, próximo a Bolsward, na Frísia, Países Baixos, ingressou na Ordem do Carmo em 17 de setembro de 1898, no convento de Boxmeer, onde adotou o nome religioso de “Titus”, em homenagem ao pai. Em 1906, obteve doutorado em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. De volta aos Países Baixos, dedicou-se ao ensino, fundando a Escola Comercial de Oss (1919) e o Liceu Clássico de Oldenzaal (1923). Com a fundação da Universidade Católica de Nimega em 1923, Titus tornou-se professor de História da Mística e Filosofia, alcançando em 1932 o posto de Rector Magnificus. Sua atuação destaca-se pela defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos, especialmente contra o regime nazista, que ele denunciou publicamente. Por sua resistência, foi preso em janeiro de 1942 e deportado para o campo de concentração de Dachau, onde sucumbiu em 26 de julho do mesmo ano.

O discurso Godsbegrip[1] [Conceito de Deus] de 1932, foi realizado por ocasião do Dies Natalis[2] da Katholieke Universiteit Nijmegen – hoje conhecida como Radboud Universiteit. Nele são abordadas diferentes concepções de Deus ao longo da história, que são conectadas às, cada vez mais aceleradas, transformações culturais e intelectuais da Europa no início do século XX. O discurso proferido por Titus Brandsma, então recém nomeado Rector Magníficus (1932-1934), reflete uma síntese entre os ideais da universidade e o papel do pensamento católico no mundo moderno. Sua peça sobre o conceito de Deus foi proferida em um momento de intensas mudanças na sociedade europeia, caracterizadas pela crescente secularização, pelo avanço das ciências e o fortalecimento de ideologias[3] que se opunham às tradições religiosas. Em Godsbegrip [Conceito de Deus], Brandsma estabelece um contraponto às visões que buscavam dissociar religião e vida pública e intelectual.

Pode-se dizer que a escolha deste tema para o Dies Natalis sintonizava-se com a própria missão da universidade, fundada em 1923 para promover a emancipação dos católicos nos Países Baixos. Em um país de maioria protestante, a universidade tinha por objetivo oferecer aos católicos um espaço acadêmico onde a fé pudesse coexistir com a razão. A reflexão proposta sobre a relação entre Deus e o pensamento humano correspondia com esse ideal, apresentando a religião como uma lente através da qual o conhecimento racional e a fé poderiam ser compreendidos mais profundamente. Brandsma reafirmava o propósito da universidade como um espaço onde essas duas esferas pudessem se enriquecer mutuamente, mesmo em tempos de crise e transformação cultural.

 

2. Estrutura

A estrutura argumentativa que Titus Brandsma utiliza em Godsbegrip [Conceito de Deus] segue um estilo dissertativo-expositivo, no qual o autor expõe e defende seus argumentos sobre o desenvolvimento da concepção de Deus, com foco na análise da evolução da imagem divina (Godsbeeld) ao longo do tempo. De maneira metódica, Brandsma organiza suas ideias, oferecendo uma visão crítica e detalhada das mudanças históricas no conceito de Deus, ao mesmo tempo em que argumenta que essa imagem precisa ser ajustada para atender às necessidades contemporâneas.

Como a imagem de Deus se obscureceu tanto que muitos não são mais tocados por ela? É uma falha somente do lado deles? Ou há algo que devemos fazer para fazê-la brilhar mais claramente sobre o mundo e podemos ter esperança de que um estudo do conceito de Deus aliviará ao menos essa maior de todas as necessidades? (Brandsma, 1932)[4]

Na citação acima, pode-se observar o uso do discurso direto, predominante em todo o texto, nela o autor questiona seus interlocutores provocando-os uma reflexão sobre a clareza da imagem de Deus no contexto moderno. Brandsma discute as transformações da imagem de Deus e a necessidade de renovar essa imagem para que ela seja compreendida no contexto atual. A escolha pelo discurso direto permite que o autor se comunique claramente, de forma acessível e explícita, mesmo lançando mão de uma linguagem formal, excessivamente zelosa e com um largo uso de conceitos filosóficos.

O núcleo do discurso é a ideia da imagem de Deus, que nosso autor descreve como um conceito em constante transformação ao longo da história. Ele explora desde a figura poderosa e protetora de Deus, “Em uma palavra, Deus é poder [8] e majestade, que entronizado nas alturas do Paraíso, mas cujo reino também está neste mundo, onde Ele tem seus eleitos, que Ele guia e protege. (Brandsma, 1932)”[5] até uma entidade mais interiorizada e filosófica. “Deus voltou a ser visto mais como objeto do intelecto, como mestre da verdade. (Brandsma, 1932)[6]. Além disso, defende que devemos considerar três aspectos modernos no desenvolvimento desse pensamento: um maior entendimento metafísico, o caráter intuitivo e pragmático. A metafísica busca uma compreensão além do mundo visível, “[…] por trás do visível, se busca e descobre o invisível […] por trás dos fenômenos, procura-se uma concepção do ser, que escapa à percepção real, mas é conhecido como objeto de uma capacidade que transcende os sentidos” (Brandsma, 1932)[7]. O caráter intuitivo revela verdades que não podem ser provadas pela razão, nas palavras de Brandsma (1932):

[…] o valor que é novamente atribuído à natureza humana na medida em que, por sua própria essência e natureza, é conduzida com uma certa espontaneidade a aceitar verdades que a razão não comprova, cujas bases são vistas apenas vagamente, mas que o ser humano está consciente de possuir e conhecer como algo factual, como uma verdade, dada pela própria natureza e revelada em seu próprio fato de conhecimento.[8]

O aspecto pragmático valoriza o que se manifesta na prática. Para Brandsma, o ser humano revela em suas ações a verdade, pois ele é mais que uma mera capacidade cognitiva. Segundo o Rector Magníficus, o ser humano

é conduzido em suas ações à revelação e manifestação da verdade. A verdade, embora não seja imediatamente cognoscível pela razão, não é um bem inatingível para o ser humano, pois sua natureza, orientada para a verdade, faz com que ele a vivencie e expresse, revelando-se cada vez mais em sua ação enobrecedora na cultura em desenvolvimento (Brandsma, 1932).[9]

Brandsma destaca a necessidade de integrar a compreensão de Deus com a prática ética, enfatizando que virtude e contemplação são elementos essenciais desse processo. Sua abordagem une reflexão espiritual e ação moral, demonstrando que o conhecimento de Deus não pode ser desvinculado de ética e de um real comprometimento com o bem.

O texto mantém uma linha argumentativa clara e coesa, conduzindo o leitor por um percurso lógico. Há uma sequência de um conceito para o seguinte, criando, dessa forma, uma progressão no desenvolvimento do pensamento que permite um aprofundamento da proposta do autor. Ao lançar mão do discurso direto para expor os temas propostos, Brandsma torna o conteúdo acessível e provocativo, facilitando o entendimento dos argumentos teológicos e éticos de seu pensamento. Dessa forma, Godsbegrip [Conceito de Deus] conduz o interlocutor a refletir sobre sua própria relação com a fé e a prática moral no contexto moderno.

 

2.1. Resumo

Titus Brandsma inicia seu discurso sobre o conceito de Deus destacando que, apesar dos avanços em diversas áreas, há uma crescente tendência de afastamento do ser humano moderno de Deus. Ele questiona como a imagem de Deus se obscureceu e sugere que é responsabilidade dos cristãos não apenas defender, mas também renovar a compreensão de Deus.

Entre as muitas perguntas que faço a mim mesmo, nenhuma me ocupa mais do que o enigma de que o ser humano desenvolvido, orgulhoso e convicto de seu progresso, se afasta de Deus em tão grande número.

É perturbador que, em nossa época de tão grande progresso em diversas áreas, enfrentemos uma desonra e negação de Deus que continuam a crescer descontroladas como uma doença contagiosa.

Como a imagem de Deus se obscureceu tanto que muitos não são mais tocados por ela? É uma falha somente do lado deles? (Brandsma, 1932)[10]

Com isso, ele propõe que essa renovação deve adaptar o conceito de Deus à cultura atual, tornando-o mais acessível e atrativo.

Brandsma identifica os períodos históricos no desenvolvimento dessa imagem e reflete sobre sua evolução ao longo dos séculos. Ele reconhece que o esboço realizado não é completo, mas, com ele, pretende criar uma visão geral da evolução dos conceitos. Ele compara as representações históricas de Deus a reproduções em preto e branco de uma obra-prima colorida. A imagem de Deus se desenvolve com o tempo, com novas representações surgindo em resposta às antigas, substituindo-as ou aprimorando-as.

Segundo ele, cada nova concepção tende a adaptar-se às necessidades e tendências do momento histórico. A mudança contínua das imagens de Deus reflete as necessidades e demandas de cada época que devem atentar-se para evitar o unilateralismo – a imposição de uma única imagem de Deus, por exemplo os movimentos ultraconservadores que identificam apenas a sua própria concepção de Deus como legítima.

A questão central do discurso de Brandsma é qual imagem de Deus é necessária para o tempo presente. A peça sugere que a natureza humana tende a buscar e encontrar exatamente o que precisa para seu desenvolvimento, e que o fenômeno da reação histórica revela que o que é negligenciado em uma época surge como uma necessidade em outra. A ideia de que a natureza possui uma capacidade regenerativa é enfatizada, e a confiança nos processos naturais é vista como uma forma de reconhecer as leis e mecanismos que regem o mundo físico, funcionando como uma força autônoma (Deus). Para que a imagem de Deus seja relevante para os tempos atuais, ela deve incorporar três aspectos do pensamento moderno: a busca por um entendimento metafísico que vai além dos fenômenos visíveis; o caráter intuitivo do conhecimento humano que revela verdades que a razão não pode comprovar; e o pensamento pragmatista que valoriza a verdade revelada através da ação humana.

Além disso, o texto menciona uma mudança de orientação em relação ao pensamento, que se volta menos para o subjetivo e mais para o objetivo, refletindo maior compreensão da interdependência e do social. A crítica ao egoísmo coletivo e a busca por uma objetividade maior são destacadas, embora ainda haja desafios na economia e na política para refletir essa mudança de forma mais eficaz. A esperança de superar o caos é atribuída à capacidade histórica da natureza humana de encontrar soluções, mesmo sem um caminho claro. A confiança na natureza humana é, em última instância, uma confiança em Deus, que se revela através da natureza e da história.

O autor sugere que a imagem de Deus deve ser entendida através da manifestação das virtudes teologais, a saber: fé, esperança e caridade (amor). Essas virtudes refletem a influência de princípios éticos e contribuem para uma visão de Deus que se manifesta na vida e no agir humano. O discurso contém certo otimismo sobre o renascimento da filosofia aristotélica e tomista, que reforça a imagem de Deus e valoriza a capacidade de abstração do intelecto.

Brandsma explora a importância da visão abstrata e da contemplação de Deus, argumentando que essa capacidade de abstração deve nos levar à contemplação de Deus, que é a fonte da verdadeira felicidade. Apesar do impulso metafísico e intuitivo, buscar uma imagem mais clara de Deus deve ser um esforço contínuo de todos, especialmente para filósofos e teólogos.

O discurso também destaca o papel das instituições acadêmicas na promoção de uma compreensão rigorosa e científica sobre a ideia de Deus, alertando, ao mesmo tempo, para o risco de abordagens superficiais ou meramente exteriores à religiosidade. Além disso, faz referência à figura da Virgem Maria como um exemplo de profunda espiritualidade, sugerindo que, seguindo seu modelo, as pessoas podem buscar uma vida de maior conexão com o sagrado. A contemplação de Deus, nesse sentido, é apresentada como uma busca contínua que pode influenciar ações e fortalecer a relação com o divino.

 

2.2. Tese

O núcleo do discurso de Brandsma é que o conceito de Deus deve ser traduzido e renovado para responder às necessidades e características de cada época, para isso ele dispõe de argumentos, dentre eles o da evolução histórica da imagem de Deus. Esse argumento destaca como a imagem de Deus mudou ao longo dos séculos e sugere que cada época apresenta novas necessidades e desafios que moldam a percepção de Deus, e que é necessário adaptar, ou melhor, traduzir o conceito de Deus às circunstâncias contemporâneas para que ela continue a ter relevância e ser significativo para a sociedade.

O segundo argumento decorre do primeiro, trata-se da necessidade de renovação dessa imagem de Deus. Ela não deve ser apenas defendida, mas renovada para se tornar acessível e atrativa para o mundo. Deve-se adaptar a concepção de Deus às tendências atuais do pensamento por intermédio do entendimento metafísico, do conhecimento intuitivo e da ação pragmatista. A abstração e a contemplação também são argumentos utilizados por Brandsma que destaca a importância da busca por uma compreensão mais profunda e clara de Deus, para isso ele resgata a filosofia aristotélica e tomista. Tal compreensão nova de Deus deve adquirir contornos éticos ao transformar o agir humano na vida cotidiana.

Pode-se afirmar que a tese de Brandsma reflete uma resposta ao problema do crescente afastamento da humanidade moderna de Deus e propõe uma abordagem inovadora dentro da discussão acadêmica e teológica. O autor não apenas revisita a evolução histórica da imagem de Deus, mas também sugere um caminho que abarca tanto a razão, representada nas tendências intelectuais contemporâneas quanto a fé.

A proposta apresentada por Brandsma em Godsbegrip [Conceito de Deus] é inovadora na medida em que combina elementos teológicos com os modernos ao incorporar abstração, intuição e pragmatismo. E, ao introduzir a ideia de que a compreensão de Deus deve ser uma força prática que transforma a vida das pessoas, integra a contemplação com a ação.

Dentro de uma concepção mais ampla da obra de Titus Brandsma, essa tese se articula com suas preocupações sobre a relevância e a prática da fé cristã em um mundo em transformação. Brandsma, com certa frequência, aborda a necessidade de adaptar a teologia e a prática religiosa às mudanças culturais e sociais, e sua proposta de renovação da imagem de Deus vai ao encontro da preocupação de tornar a fé mais acessível e significativa para a sociedade contemporânea.

 

3. Principais conceitos

Titus Brandsma utiliza alguns conceitos-chave em Godsbegrip [Conceito de Deus], conhecê-los faz com que tenhamos uma melhor compreensão de seu pensamento e de seus argumentos. Dentre eles podemos destacar o conceito de collectief egoisme [egoísmo coletivo], eenzijdigheid [unilateralismo], abstractie-vermogen [capacidade de abstração], schouwing/beschouwing/aanschouwing [contemplação], dialética entre imanência e transcendência, gemeenschap [comunhão] e verandering [transformação].

Collectief egoisme [egoísmo coletivo] constitui-se de uma crítica à tendência humana de transformar a religião em uma ferramenta de poder ou interesse coletivo, dissociando-a de seu sentido espiritual. Para Brandsma, muitas vezes, a fé é instrumentalizada para servir aos interesses de uma comunidade específica ou de instituições. Esse fenômeno leva a uma distorção da religião, onde a dimensão comunitária se sobrepõe à espiritual, transformando-se em uma força de segregação ou de preservação de privilégios e, consequentemente, fomentando a divisão e a exclusão.

Eenzijdigheid [unilateralismo] diz respeito à abordagem simplista e reducionista da fé. Brandsma alerta que compreender Deus por apenas uma perspectiva resulta em uma visão limitada e fragmentada da realidade. Nosso autor sugere que um entendimento verdadeiro deve ser multilateral, integrando diferentes dimensões da experiência humana: racionalidade, emoção, religião, cultura, mística. O unilateralismo obstrui o diálogo inter-religioso e interfilosófico, criando fronteiras que separam diferentes tradições e perspectivas.

Abstractie-vermogen [capacidade de abstração] refere-se ao perigo de reduzir o entendimento de Deus a ideias filosóficas ou conceitos teóricos desvinculados da realidade concreta. Brandsma reconhece a importância da reflexão teológica e filosófica, mas alerta que a excessiva abstração pode afastar as pessoas da vivência direta da fé. Para ele, Deus não deve ser compreendido apenas como um conceito impessoal, mas como uma realidade que se manifesta no cotidiano, na história e na vida das pessoas.

Schouwing/beschouwing/aanschouwing [contemplação][11] é o caminho para uma experiência mais profunda e transformadora do divino. Ela envolve um processo de interiorização e de busca pela presença de Deus na vida pessoal e comunitária. Diferente da abstração, que tende a distanciar o indivíduo da realidade, a contemplação é uma prática que conecta o ser humano com o divino de maneira integral, influenciando diretamente suas ações e relações com o mundo. Brandsma sugere que, através da contemplação, as pessoas podem superar o egoísmo coletivo e o unilateralismo, encontrando um equilíbrio entre a as dimensões privada e pública da fé.

Dialética entre imanência e transcendência, neste conceito, Brandsma sugere que uma compreensão mais adequada de Deus deve equilibrar a ideia de Deus (teoria) como uma realidade transcendente, que está além do mundo, e imanente (prática), presente na vida cotidiana. Esse equilíbrio evita tanto o perigo da abstração quanto o do materialismo religioso. Gemeenschap [comunhão]. Embora não explicitamente mencionado como conceito-chave, a ideia de comunhão é igualmente relevante no discurso de Brandsma. Nosso autor defende uma fé que agrega, que promove a partilha de experiências e a construção de uma comunidade baseada no amor e no diálogo. Essa comunhão se contrapõe ao egoísmo coletivo, pois visa ao bem comum, e não aos interesses restritos de um grupo. Verandering [transformação] é um conceito que permeia a ideia de contemplação. Ele sugere que a busca por Deus é um processo contínuo de autotransformação. Brandsma acredita que a fé deve transformar o ser humano em suas ações cotidianas, levando-o a um compromisso ético e social que transcenda o individualismo.

Titus Brandsma, em Godsbegrip [Conceito de Deus], oferece aos seus interlocutores uma reflexão sobre as transformações do conceito de Deus ao longo da história. Embora, em um primeiro momento, o destaque esteja na compreensão teológica, há, de forma sutil, uma dimensão antropológica que subjaz todo o discurso. Essa dimensão expressa o trabalho pessoal e coletivo da humanidade na busca por sentido, não apenas no âmbito religioso, mas nas relações humanas e no processo de construção da própria identidade. Brandsma argumenta que o conceito de Deus não é estático, mas sim algo que se transforma e se aperfeiçoa conforme as necessidades e compreensões de cada época. Essa perspectiva sugere que Deus, ou a ideia de Deus, é moldada pela consciência humana e pelos desafios culturais e filosóficos de cada tempo. Tal ideia denota que o ser humano desempenha um papel ativo na interpretação e no entendimento de Deus.

Aqui reside a dimensão antropológica: o conceito de Deus não é um dado imutável entregue ao ser humano, mas algo a ser descoberto, reinterpretado e tornado compreensível (traduzido) em cada contexto histórico. Isso sugere um processo contínuo de reflexão e ação humanas, em que o ser humano não apenas recebe o sagrado, mas também participa ativamente de sua expressão e desenvolvimento. Brandsma não fala explicitamente sobre a dimensão antropológica, mas ao tratar da adaptação do conceito de Deus ao longo da história, o papel do humano nesse processo torna-se latente.

Esse trabalho de compreensão e construção do conceito de Deus e, por conseguinte, de sentido religioso pode ser interpretado também como um espelho para o trabalho que cada pessoa deve fazer consigo mesma. Antes de relacionar-se com o outro, o ser humano deve voltar-se para dentro de si mesmo, em um movimento de introspecção, de questionamento, de diálogo interno. É justamente nesse ponto que a antropologia subjacente ao discurso se evidencia: a compreensão de Deus passa pela compreensão de si e do papel que o ser humano desempenha no mundo. O processo de tornar o conceito de Deus compreensível reflete a necessidade de introspecção e de diálogo com o outro, demonstrando que a busca pelo divino está intrinsecamente ligada à construção de relações humanas mais profundas e autênticas.

 

4. Considerações finais

A reflexão oferecida por Titus Brandsma em Godsbegrip [Conceito de Deus] permanece oportuna e relevante, sobretudo em tempos de intensas transformações como os nossos. A compreensão de Deus que Brandsma nos propõe deve ser continuamente renovada para que possa dialogar com as necessidades do ser humano contemporâneo.

O Rector Magníficus não apenas revisita o desenvolvimento histórico da imagem de Deus (Godsbeeld), mas também sugere que ela precisa ser revitalizada e traduzida para as linguagens e experiências do mundo contemporâneo. Ao afastar-se de visões reducionistas ou puramente abstratas, Brandsma defende uma imagem de Deus que se adeque ao tempo sem perder sua profundidade teológico-filosófica. Sua tese é de que a compreensão de Deus deve integrar razão e fé, contemplação e ação, oferecendo uma via importante para os debates sobre a relação entre fé e modernidade, buscando, dessa forma, superar a dicotomia entre a vida pública e a fé. Para Brandsma o conceito de Deus pode e deve ser um elemento unificador, capaz de integrar as esferas intelectual, ética e religiosa.

As intuições trazidas em Godsbegrip [Conceito de Deus] são especialmente pertinentes ao nosso tempo marcado por divisões ideológicas, crises e o declínio das instituições religiosas tradicionais. Como interlocutores, somos convidados a olhar para além da superficialidade e do imediatismo da realidade. Brandsma nos propõe uma visão mais profunda e integrada da vida, na qual a fé não é apenas um aspecto cultural, mas um elemento transformador da existência humana. Embora proferida há 92 anos, Godsbegrip [Conceito de Deus] ainda é capaz de oferecer respostas às inquietações do ser humano contemporâneo.

 

5. Referências

Brandsma, Titus. Godsbegrip. Nijmegen: [s.n.], 1932. Disponível em: https://www.titusbrandsmateksten.nl/godsbegrip/. Acesso em: 10. out. 2024.

Millán Romeral, Fernando. Tito Brandsma. Lisboa: Ordem do Carmo em Portugal, 2018.

Millán Romeral, Fernando. ‘Three influences on the spiritual experience of Titus Brandsma in the Lager’. In: P.G.R. de Villiers, D.F. Tolmie, (ed.), In the Divine presence: Essays in honour of Kees Waaijman on his 80th birthday [Acta Theologica supplementum 33], África do Sul, 2022, pp 157-173. Disponível em: https://journals.ufs.ac.za/index.php/at/article/view/6452/4463. Acesso em 09 jul. 2024.

Orlandi. Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015.

 


  1. O discurso em neerlandês encontra-se disponível para consulta no Titus Brandsma Instituut, vinculado à Radboud Universiteit e à Nederlandse Provincie Karmelieten.
  2. O Dies Natalis é uma tradição mantida por muitas instituições de ensino superior ao redor do mundo. Trata-se da celebração anual que marca o aniversário da instituição. É a ocasião para refletir sobre seus valores, missão e seu papel na sociedade. Durante o Dies Natalis, há discursos de figuras importantes, como o Rector Magníficus, bem como palestras e discussões que tratam de questões contemporâneas, filosóficas e científicas.
  3. No início do século XX, a Europa vivia um período de intensas transformações políticas, sociais e culturais. Esse contexto foi marcado pelo surgimento e consolidação de diversas ideologias que desafiavam as tradições religiosas, principalmente o cristianismo. Entre as principais ideologias que se opunham às tradições religiosas estavam o secularismo, o marxismo, o liberalismo, o positivismo e o existencialismo. Essas ideologias desafiavam as tradições religiosas ao sugerirem que a moral, o conhecimento e o sentido da vida poderiam ser compreendidos sem a necessidade da fé em Deus. Ao contestarem a autoridade religiosa e seu papel na vida pública, essas correntes de pensamento contribuíram para a crescente secularização da sociedade europeia. No início do século XX, a fé cristã, que antes moldava as normas sociais e os sistemas de conhecimento, passou a ser uma das muitas vozes em um coro cada vez mais pluralista e secular.
  4. “Hoe is het Godsbeeld zoo verduisterd, dat zoovelen er niet meer door getroffen worden? Is daar tekort alleen aan hunne zijde? Of wordt er iets van ons gevraagd om het weer in helderder licht te doen stralen over de wereld en mogen wij de hoop hebben, dat een studie van het Godsbegrip dezen grootsten aller nooden tenminste lenigen zal?” (tradução nossa).
  5. “In één woord, God is macht [8] en majesteit, die hoog in de Hemelen troont, maar wiens rijk ook op deze wereld is, waar Hij zijn uitverkorenen heeft, die Hij leidt en beschermt” (tradução nossa).
  6. “God werd weer meer gezien als voorwerp van het verstand, als verlichter en leeraar der waarheid”(tradução nossa).
  7. “[…] achter het zichtbaar waarneembare het onzichtbare wordt nagespeurd en ontdekt, […] achter de verschijnselen gezocht wordt naar een voorstelling van het wezen, dat aan de eigenlijke waarneming ontsnappend gekend wordt als voorwerp van een boven de zinnen uitgaand vermogen” (tradução nossa).
  8. “[…] de waarde, welke hierbij weder aan de menschelijke natuur wordt toegekend in zooverre deze uit haar aard en wezen met een zekere spontaneiteit gebracht wordt tot de aanname der waarheden, welke de rede niet bewijst, waarvan de gronden niet dan vaag worden gezien, maar welke de mensch zich bewust is te bezitten en te kennen als iets feitelijks, als een waarheid, in en door de natuur zelve gegeven en in haar kenfeit tot openbaring gebracht” (tradução nossa).
  9. “wordt hij in zijn daden tot openbaring en kenbaarmaking van de waarheid geleid. De waarheid voor het verstand onmiddellijk niet kenbaar is toch voor den mensch geen onbereikbaar bezit, omdat zijn natuur op de waarheid ingesteld hem de waarheid doet beleven en uitleven en zich in haar veredelende werking voortdurend sterker in de voortschrijdende cultuur openbaart” (tradução nossa).
  10. “Onder de vele vragen, welke ik mijzelven stel, houdt wel geen mij meer bezig dan het raadsel, dat de zich ontwikkelende mensch, prat en fier op zijn vooruitgang, zich in zoo grooten getale afkeert van God. Ontstellend is het, dat wij in onzen tijd van zoo grooten vooruitgang op allerlei gebied staan voor een, als een besmettelijke ziekte voortwoekerende Godsonteering en Godsontkenning. Hoe is het Godsbeeld zoo verduisterd, dat zoovelen er niet meer door getroffen worden? Is daar tekort alleen aan hunne zijde?” (tradução nossa).
  11. Em nosso trabalho, optamos por traduzir schouwing, beschouwing e aanschouwing como “contemplação”, a escolha que consideramos mais adequada dentro do texto, entretanto há distinções entre elas que caberiam nesta nota. Schouwing possui um sentido mais abstrato (espiritual ou metafísico) de “contemplar”. É quando o objeto contemplado mostra-se ou revela-se. Essa palavra pode comportar a ideia de um insight intuitivo. Deriva do verbo schouwen, que significa “ver”. Seu uso é mais frequente em textos filosóficos, teológicos ou místicos. Beschouwing está mais relacionado à “observação reflexiva” ou “consideração”, onde o ato de contemplar envolve uma análise crítica, avaliativa. Deriva de beschouwen, que significa “considerar” ou “observar” algo de forma reflexiva. O prefixo be– indica uma ação mais ativa e direcionada, ou seja, o sujeito está envolvido no ato de observar com uma análise crítica ou avaliação. Aanschouwing diz de uma “percepção visual”, sendo a experiência imediata do ato de ver algo com os próprios olhos. É mais concreto, remetendo à experiência sensorial de observação direta. Deriva de aanschouwen, que significa “observar diretamente”. O prefixo aan– sugere essa proximidade ou contato direto com o objeto, o que reforça a ideia de percepção visual imediata.

 

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